A Fábrica

Maio 24 2008

Decido o título definitivo e completo do meu blablabla que é Alá não é obrigado a ser justo em todas as coisas desta Terra. E pronto. Começo a contar as minhas baboseiras.
E, para começar…e um…Chamo-me Birahima. Sou um p’tit négre. Não por ser black e miúdo. Não! Sou p’tit négre porque falo mal francês. É assim. Mesmo quando se é grande, mesmo velho, mesmo árabe, chinês, branco, russo, mesmo americano; quando se fala mal francês diz-se sempre que se fala p’tit négre. Isso é a lei do francês de todos os dias que assim decreta.
…E dois… A minha escola não foi lá muito longe; cortei com o curso elementar dois. Deixei o banco porque toda a gente diz que a escola não vale nada, nem sequer o peido de uma avó velha (é assim que se diz em preto negro africano indígena quando uma coisa não vale nada. Diz-se que não vale o peido de uma avó velha porque o peido da avó lixada e magricela não faz barulho e não cheira assim muito, muito mal). A escola não vale o peido da avó porque, mesmo com o diploma da universidade, não se consegue ser enfermeiro ou professor primário em nenhuma das repúblicas bananeiras corrompidas da África francófona. (República bananeira quer dizer aparentemente democrática mas, na verdade, governada por interesses privados, pela corrupção.) Mas mesmo frequentar o curso elementar dois não é forçosamente autónomo e mirífico. Fica-se a saber alguma coisa, mas não o suficiente; ficamos a parecer-nos com aquilo a que os pretos negros africanos indígenas chamam uma panqueca tostada dos dois lados. Já não somos aldeões, selvagens como os outros pretos negros africanos indígenas: ouvimos e compreendemos os negros civilizados e os toubabs, tirando os ingleses e os americanos pretos da Libéria. Mas ignoramos geografia, gramática, conjugações, divisões e redacção; não conseguimos ganhar o dinheiro facilmente como agente do Estado numa república lixada e corrompida, como a Guiné, a Costa do Marfim, etc., etc.
…E três…sou insolente, incorrecto como a barba de bode e falo como um sacanete. Não digo, como os pretos negros africanos indígenas muito engravatados: merda! Raios! Safado! Sirvo-me de palavras malinké, como faforo! (Faforo quer dizer sexo do meu pai ou do pai ou do teu pai). Como gnamokodé! (Gnamokodé quer dizer bastardo ou bastardia). Como Walahé! (Walahé quer dizer em nome de Alá.) Os Malinkés é a minha raça. É o tipo de pretos negros africanos indígenas que são numerosos no Norte da Costa do Marfim, na Guiné e noutras repúblicas bananeiras e lixadas como a Gâmbia, a Serra Leoa e o Senegal lá longe, etc.
1ª Página do livro, Alá não é obrigado, de Ahmadou Kouroma, ASA Editores, 1ª edição, Setembro de 2004.

NOTA:Neste livro, Ahmadou Kouroma (Costa do Marfim 1927 – França 2003) , narra-nos pela boca de uma criança de onze anos, o menino soldado Birahima, a terrível realidade que assola o continente africano: as alianças entre chefes de Estado e o mundo do crime, a corrupção generalizada, as dificuldades nas Nações Unidas actuarem no terreno, os desvios das ajudas humanitárias enviadas pelas organizações não governamentais, e a terrível situação dos meninos soldados.
O número de crianças a participar directamente em combate é difícil de quantificar, mas segundo a organização não governamental britânica Human Rights Watch, existem entre 200 mil e 300 mil meninos soldados, que participam actualmente em guerras em 21 países em todo o mundo. Metade destes meninos soldados encontram-se em África, onde lutam mais de 100 mil crianças, mas também podem ser encontrados, na guerrilha maoísta do Nepal, no grupo terrorista Farc, na Colômbia, na Palestina, no Sudão ou no Mianmar, onde o recrutamento é legal a partir dos 12 anos.
A imagem tipicamente africana do menino com uma Kalashnikov nas mãos, que se encontra na capa do livro, não é representativa de todos os meninos soldados. Muitos dos meninos soldados, fazem o trabalho que militarmente é destinado à companhia de serviços, como cozinhar, lavar etc. Outros são usados como escravos sexuais, não havendo distinção no sexo. Outros ainda servem para fazer a desminagem de campos de minas ou para os minar. Segundo números da Organização das Nações Unidas, desde de 1987, cerca de dois milhões de crianças morreram em combate e este número não inclui, os mortos da guerra Irão/Iraque, que no seu final, era mantida principalmente por adolescentes. Assiste-se actualmente a uma grande pressão internacional, por parte de algumas organizações não governamentais, para terminar com a prática de recrutar meninos soldados, mas este movimento, está apenas no princípio.
publicado por Armando S. Sousa às 00:32

Maio 20 2008

Chegou o momento em que já não lhes bastava o sofrimento dos outros; precisavam de assistir ao espectáculo.
Para se ser preso, não era necessária nenhuma qualificação. As rusgas produziam-se por toda a parte: levavam toda a gente, sem possibilidades de derrogação. O único critério era tratar-se de um ser humano.
Naquela manhã, Pannonique fora passear ao Jardim dês Plantes. Chegaram os organizadores e passaram o parque a pente fino. A jovem deu consigo num camião.
Foi antes da primeira emissão: as pessoas ainda não sabiam o que ia acontecer-lhes. Indignavam-se. Na estação de caminhos-de-ferro, comprimiram-nas dentro de um vagão para animais. Pannonique viu que estavam a ser filmados: iam escoltados por várias câmaras que não perdiam pitada da angústia dos prisioneiros.
A rapariga compreendeu então que não lhe serviria de nada revoltar-se, mas seria telegénico. Permaneceu, portanto, impassível durante a longa viagem. À sua volta, crianças choravam, adultos vociferavam, velhos sufocavam.
Desembarcaram-nos num campo semelhante aos de deportação nazi, afinal não muito antigos, com uma notória diferença: havia câmaras de vigilância instaladas por toda a parte.

Não era necessária nenhuma qualificação para ser organizador. Os chefes mandavam desfilar os candidatos e seleccionavam os que apresentavam “os semblantes mais significativos”. Em seguida, tinham de responder a questionários sobre comportamento.
Zdena, que nunca na vida ficara aprovada num exame, foi aceite. Daí nasceu um grande orgulho. Doravante, poderia dizer que trabalhava na televisão. Aos vinte anos, sem estudos, um primeiro emprego: os seus familiares iam finalmente deixar de escarnecer dela.
Explicaram-lhe os princípios da emissão. Os responsáveis perguntaram-lhe se a chocavam:
-Não. É intenso – respondeu ela.
Pensativo, o caça-talentos disse-lhe que era exactamente assim.
-É o que as pessoas querem - acrescentou ele. – Acabou-se o estilo amaneirado, afectado.
A rapariga submeteu-se a outros testes nos quais provou ser capaz de agredir desconhecidos, gritar insultos gratuitos, impor a autoridade, não se deixar impressionar por lamúrias.
- O que conta é o respeito do público – declarou um responsável.
- Nenhum espectador merece o nosso desprezo.
Zdena concordou.
Foi-lhe atribuído o posto de kapo.
- Chamar-lhe-ão kapo Zdena – disseram-lhe.
Agradou-lhe o termo militar.
- Tens jeito, kapo Zdena – reconheceu ela perante o seu reflexo no espelho.
Já nem se apercebia de que estava sempre a ser filmada.

Os jornais já só falavam deste assunto. Os editoriais inflamaram-se, as boas consciências indignaram-se.
O público, esse, pediu que lhe dessem mais do mesmo, logo após a primeira emissão. O programa, que se chamava sobriamente Concentração, atingiu recordes de audiência. Nunca se vira o horror de forma tão directa.
1ª Página (um pouco mais) do livro Ácido Sulfúrico, de Amélie Nothomb, Edições ASA, 1ª edição Maio de 2007.
Nota: O livro de Nothomb parte da criação de um novo reality show, Concentração, o qual reproduz as condições que se vivia nos campos de concentração nazistas, onde impera a violência gratuita, os maus-tratos, a fome, os trabalhos forçados e a desumanizaço dos concorrentes, excepto, que por todo o lado estão instaladas câmaras de televisão, que transmitem todas as cenas, para um público interessado na violência kafkiana.
Os concorrentes forçados deste reality show são encontrados nas ruas de Paris e daí conduzidos em vagões para animais para o estúdio que, reproduz as condições de campo de concentração. A ordem no campo de concentração é mantida por kapos, escolhidos entre os mais imbecis e ineptos da sociedade.
O programa alcança instantaneamente um sucesso sem precedentes na televisão e atinge o seu clímax semanalmente, quando os telespectadores usam o televoto, para decidirem, qual dos concorrentes deve ser executado sumariamente.
A escritora belga Amélie Nothomb criou neste livro uma sátira violenta às degradantes tendências televisivas actuais, especialmente ao telelixo dos reality shows e também, um ataque a uma sociedade, em que o sofrimento extremo é reconvertido num espectáculo de sucesso. A nossa sociedade.
publicado por Armando S. Sousa às 13:00

Maio 19 2008

ELE OUVIU TOCAR OS SINOS DA MITROPOLIE e então lembrou-se de que era noite de Páscoa. E subitamente a chuva, aquela chuva sob a qual ele andava desde que saíra da estação de comboios e que ameaçava tornar-se torrencial, pareceu-lhe normal. Ele avançava num passo rápido, abrigado debaixo do seu guarda-chuva, com as costas curvadas e os olhos baixos, tentando não se molhar demasiado. Depois, mesmo sem se dar conta, começou a correr, com o guarda-chuva diante do peito, como um escudo. Teve, porém, de parar vinte metros mais à frente, no sinal vermelho. Enquanto esperava, saltitava nervoso, punha-se na ponta dos pés, mudava de lugar, observava consternado as poças que, a alguns passos dele, cobriam uma boa parte da avenida. O sinal vermelho apagou-se e, um segundo mais tarde, a explosão de luz branca, incandescente, agitava-o brutalmente, cegava-o. Como se um ciclone abrasador explodisse, de uma forma incompreensível, no cimo da sua cabeça e a aspirasse. “O relâmpago não caiu muito longe”, disse para si próprio piscando penosamente os olhos a fim de descolar as pálpebras. Ele não compreendia por que razão segurava com tanta força o cabo do guarda-chuva. A chuva redobrava de violência, assaltava-o por todos os lados e, no entanto, ele não sentia nada. Ouviu de novo os sinos da Mitropolie, e depois os de todas as outras igrejas, e, muito próximo, um carrilhão solitário e desolado. “Tive medo!”, pensou. Ele tremia. “É por causa da água”, disse para consigo alguns instantes mais tarde ao aperceber-se de que estava caído no chão, na valeta. “Estou a apanhar frio…”
Então ouviu aquela voz ofegante, uma voz de homem aterrorizado:
- Eu estava lá quando o relâmpago o atingiu. Não sei se ainda está vivo. Eu olhava precisamente para onde ele estava, na borda do passeio, e vi-o pegar fogo da cabeça aos pés, e começou tudo a arder ao mesmo tempo: o guarda-chuva, o chapéu, as roupas. Se não fosse a chuva, ele teria ardido como uma tocha… Não sei se ainda estará vivo – repetiu.
1ª Página do livro, uma segunda juventude, de Mircea Eliade, Bico de Pena, 1ª edição Março de 2008.
Nota: Uma Segunda Juventude, conta-nos a história de Dominic Matei, um respeitado académico, professor de linguística, filósofo e historiador com 70 anos. Apesar do seu sucesso académico, é um homem infeliz e amargurado com a vida, por ter perdido o seu grande amor, Laura, devido á investigação académica. Este desespero leva-o a encetar uma viagem a Bucareste com o intuito de se suicidar.
Contudo, uma dramática e incrível fatalidade, ocorre quando ele é, fulminado por um relâmpago e sobrevive miraculosamente
No hospital, enquanto recupera, os médicos assistem com incredibilidade ao rejuvenescimento físico do professor, acompanhado por um desenvolvimento intelectual inexplicável que chama a atenção de cientistas nazis, obrigando o professor a exilar-se. Em fuga, Matei reencontra Laura, o seu amor perdido, reencarnada como Veronica e luta para terminar a sua tese sobre as origens da linguagem humana. Mas quando a sua pesquisa ameaça a existência de Veronica, Matei é forçado a escolher entre o trabalho de uma vida ou o seu grande amor.
publicado por Armando S. Sousa às 18:12

Maio 18 2008

Se vais ler isto, não te maces.
Ao fim de um par de páginas, não vais querer estar aqui. Por isso, esquece. Sai enquanto ainda estás inteiro.
Salva-te.
Tem de haver qualquer coisa melhor na televisão. Ou, uma vez que tens tanto tempo livre, talvez pudesses tirar um curso à noite. Tornares-te médico. Podias fazer qualquer coisa boa para ti. Oferecer a ti próprio um jantar fora. Pintar o cabelo.
Não estás a ficar mais jovem.
O que acontece aqui, primeiro, vai chatear-te. Depois, vai ficando cada vez pior.
O que vais ter aqui é uma história estúpida sobre um rapazinho estúpido. Uma estúpida história verdadeira sobre ninguém que alguma vez te tenha apetecido conhecer. Imagina este idiotazinho que te deve dar pela cintura, com uma mão-cheia de cabelo louro, penteado com risco ao lado. Imagina o pieguinhas do pequeno merdoso nas fotografias antigas da escola, sem alguns dos dentes de leite e com os primeiros dentes de adulto a nascerem tortos. Imagina-o vestido com uma estúpida camisola às riscas azuis e amarelas, uma camisola que tinha sido prenda de anos e era a sua preferida. Mesmo assim tão novinho, imagina-o a roer as imbecis das unhas dos dedos. Os sapatos preferidos são Keds. A comida preferida, aquela porra das salsichas fritas.
Imagina um rapazinho sebento com cinto de segurança posto, sentado numa carrinha escolar ao lado da mamã depois do jantar. Só que está num carro da polícia parado à frente do motel deles e, por isso a mamã carrega no acelerador e continua a cem ou cento e dez quilómetros hora.
Isto é sobre um estúpido de um fuinhazinho que, podes ter a certeza, era o mais estúpido dos sabujinhos imbecis e choramingas que alguma vez existiu.
Um mariquinhas.
1ª Página do livro, Asfixia, de Chuck Palahniuk, Editorial notícias, 1ª edição Outubro de 2003.
Nota: Chuck Palahniuk emergiu nos anos noventa do século passado, como uma das vozes mais originais da moderna literatura americana. Nascido em Pasco, Washington, a 21 de Fevereiro de 1962, vive actualmente em Portland, Oregon, nos Estados Unidos. De descendência francesa e russa, Chuck Palahniuk teve uma vida mais insólita, que os personagens dos seus livros. Quando era adolescente o seu avô suicidou-se, após matar a mulher. Por sua vez, o seu foi assassinado juntamente com a namorada, pelo ex. marido desta. Estes acontecimentos trágicos serão um leit motiv, para o humor negro de Palahniuk, transversal em toda a sua obra. Licenciado pela Universidade de Oregon, tentou uma carreira jornalística, sem êxito. Como alternativa, foi sucessivamente artista rap, sem êxito, lutador, sem êxito e finalmente mecânico numa empresa de montagem de automóveis, sem êxito. A frustração nascida de um trabalho pouco atraente terá estado na origem do seu primeiro romance, Clube de Combate (1996). Com ele arrebatou vários prémios literários sendo o livro adaptado ao cinema por David Fincher, com Brad pitt, Edward Norton e Helena Bonham Carter nos principais papéis. O livro e o filme, criaram o culto Palahniuk. Seguiram-se, entre outros, títulos como Sobrevivente (1999), Monstros Invisíveis (1999), Asfixia (2001), Lullaby (2002).
Palahniuk denuncia com humor corrosivo a sociedade moderna, centrando a sua ironia, no consumo desenfreado e no excesso de informação. A capacidade de radiografar a sociedade actual, especialmente a americana, com uma prosa nua e crua, sem qualquer tipo de floreados, faz com que a cada edição de um novo livro, a legião de fãs da obra de Palahniuk, não pare de crescer.
publicado por Armando S. Sousa às 12:14

Maio 17 2008

Algumas horas antes do nascer do dia, Henry Perowne, neurocirurgião, acorda e começa imediatamente a mexer-se: senta-se, afasta a roupa e depois põe-se de pé. Não é claro para ele em que momento ficou consciente, nem isso lhe parece relevante. Aquilo nunca lhe acontecera, mas não se sente alarmado nem sequer levemente surpreendido, pois o movimento é fácil, agradável para os seus membros, e sente uma força rara nas costas e nas pernas, Está de pé ao lado da cama, nu – dorme sempre nu -, consciente da sua altura, da respiração paciente da sua mulher e do ar frio do quarto na sua pele. Também essa sensação lhe dá prazer. Na mesa de cabeceira, o relógio mostra que são três e quarenta. Não faz a menor ideia do que está a fazer fora da cama: não precisa de ir à casa de banho, não foi perturbado por nenhum sonho nem por qualquer acontecimento do dia anterior, nem sequer pelo estado do mundo. É como se, ali de pá, na escuridão, se tivesse materializado do nada, inteiramente formado, sem qualquer limitação. Não se sente cansado, apesar da hora e do muito que tem trabalhado ultimamente, nem há qualquer caso recente que lhe perturbe a consciência. Na verdade, está bem desperto, com a cabeça vazia e inusitadamente alegre. Sem que isso corresponda a qualquer decisão ou motivação, começa a dirigir-se para a mais próxima das três janelas do quarto, e a facilidade e leveza com que caminha leva-o mais uma vez a suspeitar que está a dormir ou a ter um ataque de sonambulismo. Se for verdade, ficará desapontado. Os sonhos não lhe interessam; a possibilidade de tudo aquilo ser real é muito mais rica. Além disso, tem a certeza de que está absolutamente consciente e sabe que o sono já ficou para trás: reconhecer a diferença entre estar a dormir e acordado, reconhecer as fronteiras, é a essência da sanidade.
1ª Página do livro, Sábado, de Ian McEwan, Gradiva, 1ªedição Maio 2005.
O livro Sábado é a obra joyceana de Ian McEwan. A acção do livro decorre num único dia, Sábado, 15 de Fevereiro de 2003. Henry Perowne é um homem realizado — um neurocirurgião de sucesso, marido dedicado de Rosalind, uma advogada que trabalha num jornal, e pai orgulhoso de dois filhos já crescidos, uma promissora poetisa e um talentoso músico de blues. Ao contrário do que é habitual, acorda antes do nascer do dia, é atraído para a janela do seu quarto e dominado por uma sensação crescente de mal-estar. O que o perturba ao olhar para o céu é o estado do mundo — a guerra iminente com o Iraque, um pessimismo que não pára de crescer nele desde o 11 de Setembro, e o medo de que a sua feliz vida familiar e a sua cidade, com a abertura e diversidade que a caracterizam, estejam ameaçadas. Mais tarde, Perowne dirige-se para o seu jogo semanal de squash atravessando as ruas de Londres onde centenas de milhares de pessoas se manifestam contra a guerra. Um pequeno acidente de automóvel fá-lo entrar em confronto com Baxter, um jovem nervoso, agressivo, a raiar a violência. A experiência profissional de Perowne sugere-lhe que há qualquer coisa de profundamente errado naquele indivíduo. Quase ao fim de um dia repleto de incidentes, mas em que Perowne celebrou todos os prazeres da vida — música, comida, amor, a excitação do desporto e a satisfação de um trabalho bem feito — a sua família reúne-se para jantar. Mas, com o súbito aparecimento de Baxter, os receios iniciais de Perowne parecem prestes a materializar-se. Fonte:Gradiva
Ian McEwan nasceu a 21 de Junho de 1948 em Aldershot, Inglaterra mas passou grande parte da sua infância na Ásia, devido à profissão de militar exercida pelo pai. Estudou na Universidade de Sussex onde se licenciou em Literatura Inglesa. Posteriormente tirou um curso de escrita criativa com os escritores Malcolm Bradbury e Angie Wilson.
Começou a escrever contos no início da década de 1970 para publicações de índole literária, como a American Review e a Transatlantic Review. Em 1976, McEwan viu o seu talento reconhecido com a atribuição do prémio Somerset Maugham pelos oitos contos que compuseram a sua primeira obra: Primeiro Amor, Últimos Ritos. O autor ainda publicou mais um livro de contos, Entre os lençóis (1978), antes de iniciar a sua carreira como romancista.
As suas obras distinguem-se pelas sugestões sinistras ou macabras e pelos elementos de violência e sexualidade bizarra, como acontece nos contos de Primeiro Amor, Últimos Ritos (1975).
Da sua obra como romancista fazem parte os romances O Jardim de Cimento (1978), A Criança no Tempo (1987), O Inocente (1990), O Sonhador (1994), O Fardo do Amor (1997), Amesterdão (1998), Expiação (2001) e Sábado (2005) e Na Praia de Chesil (2007).
Em 1998, foi-lhe atribuído o Booker Prize pela obra Amesterdão, cuja acção se desenrola a partir da morte súbita de Molly Lane, fotógrafa profissional quadragenária. A sua escrita retrata os homens comuns, sem emoção, piedade ou julgamento.
Em 2001, foi lançado Expiação, um romance que fala do solitário ofício de imaginação da escrita e que foi distinguido pelo The National Book Critics Circle com o prémio de melhor livro de ficção de 2002.
Em 2005 editou Sábado e dois anos depois, foi novamente finalista do Booker Prize, a sua quinta vez, com o romance "Na Praia de Chesil", acabando por perder o galardão para a escritora irlandesa Anne Enright.
publicado por Armando S. Sousa às 12:00

Maio 14 2008

O Sr. Jones, da Quinta Manor, tinha trancado os galinheiros, mas estava demasiado bêbado para se lembrar de fechar os postigos. Como o círculo de luz da lanterna dançando de um lado para o outro, atravessou o pátio aos tombos, livrou-se das botas na porta das traseiras, serviu-se de um último copo de cerveja do barril da copa e subiu para o quarto, onde a Srª Jones já ressonava.
Assim que a luz do quarto se apagou, houve agitação e alvoroço em todas as divisões da quinta. Constara, durante o dia, que o velho Major, o premiado porco “Middle White”, tivera um estranho sonho na noite anterior e desejava transmiti-lo aos outros animais. Ficara acordado reunirem-se todos no celeiro grande, logo que estivessem livres do Sr. Jones. O velho Major (como sempre lhe chamavam, embora o nome com que fora exibido fosse Beleza de Willingdon) era tão respeitado na quinta que todos estavam dispostos a perder uma hora de sono para ouvirem o que ele tinha a dizer.
1ª Página do livro, O Triunfo dos Porcos, de George Orwell, Publicações Europa-América, 2ª edição.
Nota. Publicado pela primeira vez em 1945, O Triunfo dos Porcos, é um livro sempre actual. O mandamento, Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que outros, não podia ser mais actual.
publicado por Armando S. Sousa às 19:35

Maio 12 2008

Nasci na cidade de Bombaim…um certo dia. Não, não pode ser assim. A data exacta. Nasci na maternidade do Dr. Narlikar no dia 15 de Agosto de 1947. Horas? A hora também é importante. Pois seja: foi de noite. Não, procuremos ser mais…Foi exactamente ao bater da meia-noite. Os ponteiros do relógio uniram as palmas das mãos para me cumprimentarem respeitosamente e me darem as boas-vindas. Há que dizer tudo: fui dado à luz no exacto momento em que a Índia se tornava independente. Continha-se a respiração. Do lado de fora da janela misturava-se o estralejar do fogo-de-artifício com a algazarra da multidão. Poucos segundos depois, o meu pai fracturou o dedo grande do pé; acidente insignificante em comparação com aquilo que me acontecia a mim naquele momento da noite; graças à tirania oculta dos relógios delicadamente acolhedores, eu passava a estar misteriosamente ligado à história e o meu destino indissoluvelmente unido ao meu país. Durante as três décadas seguintes, ser-me-ia impossível escapar. A minha chegada tinha sido profetizada pelos adivinhos, celebraram-na os jornais, os políticos ratificaram a minha autenticidade. Não me foi consentido qualquer voto na matéria. Eu, Saleem Sinai, mas tarde chamado também Muco-na-Penca, Cara-Manchada, Careca, Sorve-Ranho, Buda e até Pedaço-de-Lua, fiquei definitivamente comprometido com o destino…as mais das vezes perigosamente amarrado a esse compromisso. E nessas alturas não tinha quaisquer possibilidades de me assoar.
Entretanto, o tempo (uma vez que não sei o que fazer de mim) está agora a chegar ao seu termo. Completarei em breve trinta e um anos. Se calhar. Se este meu corpo velho e escangalhado o permitir. Mas não me restam grandes esperanças de me salvar, não tenho pela frente sequer mil noites e uma noite. Tenho de ser rápido, mais rápido do que Xerazade, e é se quero deixar claro o sentido… Sim, o sentido. Não há nada que eu receie mais do que o absurdo.
E tenho tantas, tantas histórias para contar, são tantas vidas acontecimentos milagres lugares rumores que se entrelaçam, é tal a mistura de improvável e de mundano! Fui um devorador de vidas e para me conhecerem, só a mim, vão ter de engolir outras tantas. Em mim se cruzam e entrechocam multidões desaparecidas. Guiado apenas pela recordação dum enorme lençol branco, com um buraco vagamente circular de sete polegadas de diâmetro aberto no meio, amarrado ao sonho desse pano furado e mutilado que é o meu talismã, o meu abre-te, Sésamo, vou ter de reconstituir a história da minha vida a partir do momento em que ela efectivamente começou, aí uns trinta e dois anos antes de uma coisa tão óbvia e tão presente como foi o meu nascimento badalado pelos relógios e marcado pelo crime.
(O dito lençol, diga-se de passagem, está também manchado por três gotas de um vermelho velho e desmaiado. Como diz o Alcorão: Proclama em nome do Senhor teu Criador que fez o homem de um coágulo de sangue.)
1ª Página do livro, Os Filhos da Meia-Noite, de Salman Rushdie, Editores Reunidos, 1994.
Nota: O romance “Os Filhos da Meia-Noite”, é o favorito a converter-se no melhor Prémio Booker da história deste galardão literário, que completa agora 40 anos e é o mais prestigioso do Reino Unido.
A lista de finalistas foi escolhida por um júri presidido pela biógrafa, romancista e crítica literária Victoria Glendinnir e composto pela escritora e apresentadora Mariella Frostrup e o catedrático John Mullan. O vencedor será anunciado a 10 de Julho, no marco do Festival de Literatura de Londres.
Os leitores têm até à meia-noite de 08 de Julho para votar,
na página web do prémio
, no melhor romance premiado com o Booker, concedido pela primeira vez em 22 de Abril de 1969.
Além do romance de Rushdie, premiado en 1981, figuram na lista de finalistas, agora divulgada, “The Ghost Road” (1995), de Pat Barker, “Óscar e Lucinda” (1988), de Peter Carey, “Desgraça” (1999), de JM Coetzee, “ O Conservador” (1974), de Nadine Gordimer, e “The Siege of Krishnapur” (1973), de JG Farrell.
Já quando se celebrou o vigésimo quinto aniversário do galardão, em 1993, o livro de Rushdie fora eleito o melhor “Booker Prize”. Hoje, 15 anos depois, as apostas na firma William Hill voltam a apontá-lo como favorito, seguido pelas obras Pat Barker, Peter Carey, JM Coetzee, Nadine Gordimer e JG Farrell.(Lusa).
publicado por Armando S. Sousa às 18:02

Maio 11 2008

A UM DEUS DESCONHECIDO

Ele é que nos faz respirar e a força é dádiva Sua.
As altas divindades respeitam os Seus mandamentos.
A Sua sombra é Vida, a Sua sombra é Morte;
Quem é Ele. a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Apesar do Seu poder, tornou-se senhor da vida e do mundo resplandecente.
E governa o mundo, os homens e as bestas.
Quem é ele, a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Da Sua força as montanhas tomaram forma, e também o mar
E o distante rio;
Sãos esses o Seu corpo e os seus dois braços.
Quem é Ele, a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Fez o Céu e fez a Terra e, pela Sua vontade, ocuparam os seus lugares,
Contudo, olham-No e estremecem.
O Sol nascente brilha sob a Sua vontade.
Quem é Ele, a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Olhou sobre as águas que entesouraram o Seu poder e engendraram a imolação.
É o Deus dos Deuses.
Quem é Ele a Quem oferecemos o nosso sacrifício?

Que não nos fira Aquele que fez a Terra,
Que fez o Céu e o Mar reluzente?
Quem é o Deus a quem oferecemos sacrifícios?

Após o armazenamento das colheitas na quinta Wayne, próximo de Pittsford, no Vermont, quando a lenha para o Inverno estava cortada e a primeira fina camada de neve jazia no solo, Joseph Wayne foi ter com o pai, que se encontrava sentado na cadeira de costas altas, junto da lareira. Aqueles dois homens eram semelhantes. Ambos tinham grandes narizes e maças do rosto salientes; ambos os rostos pareciam feitos do mesmo material, mais duro e durável que a carne, uma substância semelhante à pedra, que não se altera com facilidade. A barba de Joseph era negra e sedosa, ainda suficientemente rala para que o esboço sombreado do queixo se visse através dela. A do velho era longa e branca. Cofiava-a aqui e ali, com dedos cautelosos, tornando-lhe as pontas para a proteger. Só passado um bocado deu pela presença do filho a seu lado. Ergueu os olhos velhos, conhecedores e plácidos olhos muito azuis. Os de Joseph eram também da mesma cor, mas orgulhosos e curiosos com a juventude. Agora que se encontrava junto do pai, hesitava comunicar-lhe a sua nova heresia.
Preâmbulo e 1º página do livro, A Um Deus Desconhecido, de John Steinbeck, editora Livros do Brasil.
John Steinbeck.
publicado por Armando S. Sousa às 12:40

Maio 09 2008

SE ISTO É UM HOMEM

Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repetias aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.

Fui capturado pela Milícia fascista a 13 de Dezembro de 1943. Tinha vinte e quatro anos, pouco bom senso, nenhuma experiência e uma acentuada inclinação, favorecida pelo regime de segregação ao qual desde há quatro anos fora obrigado pelas leis raciais, para viver num mundo só meu, pouco real, povoado por civilizados fantasmas cartesianos, por sinceras amizades masculinas e por amizades femininas evanescentes, Cultivava um moderado e abstracto sentido de rebelião.
Não fora fácil para mim escolher a via das montanhas e contribuir para pôr de pé a que, na minha opinião e de outros amigos pouco mais experientes do que eu, deveria transformar-se numa brigada de partigiani filiada no grupo “Giustizia e Libertá”. Faltavam-nos os contactos, as armas, o dinheiro e a experiência para os arranjar; faltavam os homens capazes e, pelo contrário, estávamos submersos por um dilúvio de pessoas desqualificadas, de boa e de má-fé, que chegavam até lá acima vindas da planície à procura de uma organização inexistente, de quadros, de armas, ou apenas de protecção, de um esconderijo, de uma fogueira, de um par de sapatos.
Naquele tempo, ainda ninguém me ensinara a doutrina que mais tarde havia de aprender rapidamente no Lager, segundo a qual a primeira tarefa do homem é tentar alcançar os seus objectivos com meios adequados, e quem errar, paga; por isso, não posso deixar de considerar justo o sucessivo desenrolar dos acontecimentos. Três centúrias da Milícia, partidas no meio da noite para surpreender outra brigada, bem mais potente e perigosa do que a nossa, aninhada no vale adjacente, irromperam numa espectral madrugada de neve no nosso refúgio e levaram-me para o vale como suspeito.
Preâmbulo e 1ª página, do livro, Se Isto É Um Homem, de Primo Levi, Editorial Teorema, sem data de edição.
publicado por Armando S. Sousa às 16:11

Maio 08 2008

Pelas três horas subiam ao céu negro umas bolas luminosas, submergindo a testa-de.ponte de Kustrin numa luz vermelho-brilhante. Após um momento de sufocante silêncio, começou o estrondo dos canhões, fazendo tremer as planícies do rio Oder muito além de Frankfurt. Como que movidas por uma mão fantasma, as sirenes começaram a entoar, ouvindo-se nalguns sítios até Berlim, os telefones gritavam e os livros caíam das prateleiras. Com vinte exércitos e dois milhões e meio de soldados, mais de quarenta mil lançadores de granadas e peças de campanha, como também centenas de lança-foguetes do tipo Katyusha, com trezentos projécteis por quilómetro, o Exército Vermelho abria a batalha naquele dia 16 de Abril de 1945…
1ª Página do livro, A Queda, Hitler E O Fim do Terceiro Reich, de Joachim Fest, Guerra e Paz Editores, 1ª edição 2007.
Nota: Na realidade não é a primeira página do livro, é apenas meia-página. Mas como repararam o livro não é ficção e tem tudo a ver com a fotografia abaixo publicada.
Esta obra do jornalista e historiador Joachim Fest, serviu de inspiração ao filme homónimo, estreado em 2004.
Joachim Fest ganhou notoriedade em 1973, quando lançou a biografia sobre Hitler, “Hitler. Eine Biografie” (“Hitler. Uma biografia”), considerada ainda hoje a principal obra de referência sobre o ditador.
Um mês antes de morrer (11 de Setembro de 2006) Joachim Fest, não poupou críticas a Gunter Grass, a quem classificou de uma "estridente mentira de vida" e de falso moralista, pela revelação que este fez no seu livro autobiográfico “Descascando a Cebola”, (que seria editado já depois da morte do historiador), de que teria pertencido à força nazista Waffen- SS. "A confissão chega tarde, sobretudo vinda de alguém que durante décadas se apresentou como a instância moral do país" sublinha Joachim Fest. "Grass sempre foi impiedoso quando se tratava de erros da juventude. Eu e muitos camaradas de escola fomos voluntários para a Wehrmacht porque sabíamos que assim evitaríamos acabar nas Waffen-SS", declarou.
publicado por Armando S. Sousa às 19:06

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