A Fábrica

Novembro 01 2006

Recentemente foi lançado mais um alerta prévio. O anúncio de que no ano 2050 serão necessários os recursos de dois planetas iguais à Terra para suportar a população mundial. Este aviso foi mais uma vez subvalorizado como uma espécie de profecia apocalíptica, parte integrante dos delírios de cientistas loucos e desfasados, com tendências para dramatizações desnecessárias. Convenientemente, são feitas mais algumas tentativas de relativizar a sua importância e, como andam todos absorvidas numa vida já de si complexa e o horizonte é ainda demasiado longínquo em termos da duração média de uma vida humana, é claramente preferível pensar que não é verosímil que se concretize, até para garantir alguma paz de espírito e a eliminação do sentimento de culpa.
É-lhe, por tudo isto, atribuída menor relevância do que a uma previsão astrológica. Só que efectivamente não o é. Ao contrário do pensa a quase totalidade da humanidade, os recursos do planeta são finitos e, por isso mesmo, nos próximos anos as coisas vão ficar complicadas. Estamos a trabalhar para a nossa extinção.
O mais espantoso disto tudo são as preocupações que prevalecem como fundamentais. Embora o dinheiro, o poder absorvam a atenção diárias da quase totalidade da população, as grandes questões da humanidade neste momento, giram em torno de discussões teológicas e de rivalidades internacionais que se revelam mesquinhas em face daquilo que poderá estar em causa. A extinção da espécie e, perante isto, para que interessa o resto. Por um lado, discute-se quem possui a ligação mais directa a um Deus que cada um diz que representa melhor na Terra, isto é, todos acham que são o povo escolhido. Por outro lado, nas relações internacionais discutem-se questões de identidade, de nacionalidade entre povos com o intuito de definir melhor fronteiras e nações, dividindo a Humanidade com base em pressupostos que no futuro serão irrelevantes.
Pensa-se que estas atitudes trazem algum benefício à espécie, quando muito mais importante que isto é o facto de que poderemos estar à beira de um retrocesso civilizacional.
E o que significa isto para cada um individualmente?
É aqui que habitam os fantasmas futuros que dominam o meu pensamento. Em confronto com estes, os do passado não têm qualquer possibilidade de aflorarem com intensidade relevante, até porque, com maior ou menor dificuldade, vamos vivendo. Com os do futuro, já não posso dizer o mesmo. Impotentes perante o desenrolar dos acontecimentos, inevitavelmente e de forma progressiva instalar-se-á o desespero.
Esta espécie de pesadelo em que me deixo envolver, imagens a preto e branco, como numa banda desenhada que olho as minhas filhas a dormir e fecho os olhos imaginando qual o seu futuro, se é que vão ter algum. A luz que nos iluminava desaparecerá sem remissão. Imagens de sofrimento, de gente esfomeada de trajes andrajosos e imundice, as lutas pelo mais pequeno pedaço de comida, o abandono das conquistas civilizacionais em detrimento da simples sobrevivência.
Os comportamento atávicos irão emergir como dominantes e a escuridão abater-se-á sobre a humanidade. A noite deixará de estar iluminada pela obra do Homem porque os recursos se esgotaram. As almas tornar-se-ão negras ao esquecer que a essência do ser humano vai para além da supressão da sensação de fome, o que configura uma regressão a um estado existencial em tudo igual a um vulgar animal que mais não sente que a necessidade de comer para sobreviver. Deixaremos de ser sensitivos para sermos instintivos.
Face a isto, os olhos da inocência têm um efeito notável. Quando uma criança olha para um pai, normalmente, o que se vislumbra são sinais de uma adoração e amor quase sem limites. Para nós, a sensação é tão forte que é como se todas as células do nosso corpo fossem unidas por uma corrente de origem mística e, em conjunto, todo o nosso ser se tornasse um só sentimento. Só que é preciso agir, pois os nossos comportamentos deveriam proteger o futuro e não coloca-lo em causa. A mais importante demonstração de que somos merecedores de tais sentimentos, é assegurar que possam vive num mundo onde a essência da humanidade não se desvanece ao som da nostalgia.
Se assim não for, seremos certamente alvo de julgamentos quando eles crescerem e verificarem que tudo era uma ilusão, o que lhes foi ensinado era irrelevante perante o desastre iminente e as demonstrações de afecto soarão eternamente a falsidade e a egoísmo. Este sentimento que nos une não deve ser apenas expressa em palavras, algo que nos faz sentir bem apenas e só enquanto estivermos presentes, deveria persistir para além do nosso tempo. A sensação que lhe está associada deve levar-nos a um esforço de preservação com motivação acrescida nesta época do desenvolvimento Humano. Pensamos estar a construir o futuro, educação, bens materiais, tudo em prol deles, mas existe sempre com algum egoísmo envolvido. Uns mais que outros, sentimos que realmente conseguimos algo e esquecemos o principal.
Seremos tão inconscientes que as nossa preocupações com aqueles que nos suscitam as emoções mais fortes que são passíveis de serem sentidas estão apenas associadas à nossa mortalidade? Penso que não será necessário passar muito tempo para se iniciar a reversão da adoração, do amor, do reconhecimento, quando os donos do futuro, se aperceberem da cruel realidade. Estamos a destruir aquilo que eles vão necessitar para viver. O ódio vai-se instalar, em resultado do desespero que será sobreviver e para o que não foram, seguramente, preparados pelos mesmos que os traíram e durante anos lhes juraram amor. Seremos considerados indignos de qualquer sentimento de reciprocidade.

Filipe Pinto.
publicado por Armando S. Sousa às 11:34

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