Algumas horas antes do nascer do dia, Henry Perowne, neurocirurgião, acorda e começa imediatamente a mexer-se: senta-se, afasta a roupa e depois põe-se de pé. Não é claro para ele em que momento ficou consciente, nem isso lhe parece relevante. Aquilo nunca lhe acontecera, mas não se sente alarmado nem sequer levemente surpreendido, pois o movimento é fácil, agradável para os seus membros, e sente uma força rara nas costas e nas pernas, Está de pé ao lado da cama, nu – dorme sempre nu -, consciente da sua altura, da respiração paciente da sua mulher e do ar frio do quarto na sua pele. Também essa sensação lhe dá prazer. Na mesa de cabeceira, o relógio mostra que são três e quarenta. Não faz a menor ideia do que está a fazer fora da cama: não precisa de ir à casa de banho, não foi perturbado por nenhum sonho nem por qualquer acontecimento do dia anterior, nem sequer pelo estado do mundo. É como se, ali de pá, na escuridão, se tivesse materializado do nada, inteiramente formado, sem qualquer limitação. Não se sente cansado, apesar da hora e do muito que tem trabalhado ultimamente, nem há qualquer caso recente que lhe perturbe a consciência. Na verdade, está bem desperto, com a cabeça vazia e inusitadamente alegre. Sem que isso corresponda a qualquer decisão ou motivação, começa a dirigir-se para a mais próxima das três janelas do quarto, e a facilidade e leveza com que caminha leva-o mais uma vez a suspeitar que está a dormir ou a ter um ataque de sonambulismo. Se for verdade, ficará desapontado. Os sonhos não lhe interessam; a possibilidade de tudo aquilo ser real é muito mais rica. Além disso, tem a certeza de que está absolutamente consciente e sabe que o sono já ficou para trás: reconhecer a diferença entre estar a dormir e acordado, reconhecer as fronteiras, é a essência da sanidade.
1ª Página do livro, Sábado, de Ian McEwan, Gradiva, 1ªedição Maio 2005.
O livro Sábado é a obra joyceana de Ian McEwan. A acção do livro decorre num único dia, Sábado, 15 de Fevereiro de 2003. Henry Perowne é um homem realizado — um neurocirurgião de sucesso, marido dedicado de Rosalind, uma advogada que trabalha num jornal, e pai orgulhoso de dois filhos já crescidos, uma promissora poetisa e um talentoso músico de blues. Ao contrário do que é habitual, acorda antes do nascer do dia, é atraído para a janela do seu quarto e dominado por uma sensação crescente de mal-estar. O que o perturba ao olhar para o céu é o estado do mundo — a guerra iminente com o Iraque, um pessimismo que não pára de crescer nele desde o 11 de Setembro, e o medo de que a sua feliz vida familiar e a sua cidade, com a abertura e diversidade que a caracterizam, estejam ameaçadas. Mais tarde, Perowne dirige-se para o seu jogo semanal de squash atravessando as ruas de Londres onde centenas de milhares de pessoas se manifestam contra a guerra. Um pequeno acidente de automóvel fá-lo entrar em confronto com Baxter, um jovem nervoso, agressivo, a raiar a violência. A experiência profissional de Perowne sugere-lhe que há qualquer coisa de profundamente errado naquele indivíduo. Quase ao fim de um dia repleto de incidentes, mas em que Perowne celebrou todos os prazeres da vida — música, comida, amor, a excitação do desporto e a satisfação de um trabalho bem feito — a sua família reúne-se para jantar. Mas, com o súbito aparecimento de Baxter, os receios iniciais de Perowne parecem prestes a materializar-se. Fonte:Gradiva Ian McEwan nasceu a 21 de Junho de 1948 em Aldershot, Inglaterra mas passou grande parte da sua infância na Ásia, devido à profissão de militar exercida pelo pai. Estudou na Universidade de Sussex onde se licenciou em Literatura Inglesa. Posteriormente tirou um curso de escrita criativa com os escritores Malcolm Bradbury e Angie Wilson.
Começou a escrever contos no início da década de 1970 para publicações de índole literária, como a American Review e a Transatlantic Review. Em 1976, McEwan viu o seu talento reconhecido com a atribuição do prémio Somerset Maugham pelos oitos contos que compuseram a sua primeira obra: Primeiro Amor, Últimos Ritos. O autor ainda publicou mais um livro de contos, Entre os lençóis (1978), antes de iniciar a sua carreira como romancista.
As suas obras distinguem-se pelas sugestões sinistras ou macabras e pelos elementos de violência e sexualidade bizarra, como acontece nos contos de Primeiro Amor, Últimos Ritos (1975).
Da sua obra como romancista fazem parte os romances O Jardim de Cimento (1978), A Criança no Tempo (1987), O Inocente (1990), O Sonhador (1994), O Fardo do Amor (1997), Amesterdão (1998), Expiação (2001) e Sábado (2005) e Na Praia de Chesil (2007).
Em 1998, foi-lhe atribuído o Booker Prize pela obra Amesterdão, cuja acção se desenrola a partir da morte súbita de Molly Lane, fotógrafa profissional quadragenária. A sua escrita retrata os homens comuns, sem emoção, piedade ou julgamento.
Em 2001, foi lançado Expiação, um romance que fala do solitário ofício de imaginação da escrita e que foi distinguido pelo The National Book Critics Circle com o prémio de melhor livro de ficção de 2002.
Em 2005 editou Sábado e dois anos depois, foi novamente finalista do Booker Prize, a sua quinta vez, com o romance "Na Praia de Chesil", acabando por perder o galardão para a escritora irlandesa Anne Enright.